quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A democracia pós-moderna


A democracia pós-moderna é "democracia sem democratas". Substituiu o sujeito da intimidade por uma identidade pessoal sem pessoa, baseada não em valores morais admiráveis e dignos de renome, mas no modelo das celebridades e dos "conselheiros em comunicação".

A democracia moderna se expressa na idéia de espaço público, cuja certidão de nascimento foi a polis grega. Inventora da política, esta significou o advento da isonomia (as mesmas regras válidas para todos os cidadãos), da isegoria (todos podendo tomar a palavra em público) e da democracia, porque todos igualmente legisladores. Findava então o poder privado, cujos modelos foram o pater familias, o comandante militar e o chefe religioso. Por isso, a democracia moderna se fundava em leis pan-inclusivas e universalizantes, baseadas no indivíduo considerado racional e livre. Suas instituições mediavam conflitos e acordos, como partidos, sindicatos, federações patronais, movimentos sociais e organizações de base, que produziam uma determinada representação de si constituindo, assim, sua identidade.

A democracia pós-moderna é "democracia sem democratas". Substituiu o sujeito da intimidade por uma identidade pessoal sem pessoa, baseada não em valores morais admiráveis e dignos de renome - como Sócrates que, por seu modo de vida filosófico, tornou-se o patrono da filosofia -, mas no modelo das celebridades, a que, na política, correspondem "conselheiros em comunicação". Se a democracia moderna valia-se do “decoro e do discreto”, estes indicavam o que deveria estar “ fora do campo de visão”— o obsceno, o “excluído da cena, o intolerável ao olhar ou ao pudor (assassinatos, grandes deformidades corporais, crueldades, pornografia, sentimentos pessoais, emoções, preferências religiosas ou sexuais). A democracia pós-moderna, ao contrário, promove a desinibição, triunfando a visibilidade total, uma vez que tudo merece ser visto, tanto o palco quanto os bastidores, o corpo, a consciência e o inconsciente. Da sala de estar ao quarto de dormir, tudo deve ser “democratizado” porque neles também há injustiça, poder e dominação, como na sociedade.

Desaparece a Lei moderna que postulava os homens responsáveis e iguais, de modo que a justiça pós-moderna os entende “particularizados” em grupos. Porque a pós-modernidade é a da sociedade de massa, do consumo e do espetáculo, a individualidade se faz segundo o que Freud denominou “narcisismo das pequenas diferenças” e René Girard de “rivalidade mimética”. Todos desejam as mesmas coisas porque um outro já as desejou antes de nós e é seu possuidor, devendo, como concorrente, ser destruído.

A justiça moderna investigava a “verdade” para estabelecer o dano e a reparação. A pós-moderna preocupa-se apenas com a formalidade das condições em que ela veio a público. Não que prescinda da lei, mas a cumpre no âmbito de insegurança jurídica, dando espaço a ilegalidades. De onde a objetividade do mundo ter-se convertido em negociações entre vítima e juiz, de que decorrem os pedidos de indenização material. Tudo se torna objeto de legislação: assédios, discriminações raciais, religiosas, de sexo, no espaço público, na esfera privada e da intimidade. Nos EUA, a legislação anti-tabagista ingressa no recinto da própria residência do fumante, que pode ser denunciado por familiares ou vizinhos descontentes.

A idéia de igualdade pós-moderna é a da proliferação de regulamentações, adaptadas ao consumo de direitos em uma sociedade que não é mais moderna - a do contrato social - mas pós-moderna - a da guerra de todos contra todos. A democracia pós-moderna associou política e dissimulação, resultando o prestígio da "sinceridade". Assim, se a política moderna se exercia na "distância" do governante no espaço público, a pós-moderna é a da intimidade midiática que exibe o "autêntico". O representante político é construído como "homem comum", com seus vícios e virtudes, para ser amado ou odiado. Aqui operam os mecanismos de massa que fazem do governante o “bode expiatório”, como mostram Michel Aglietta e André Orléan em "A Violência da Moeda".

A igualdade moderna supunha diferenças - sexuais, étnicas, raciais ou religiosas - a serem reconciliadas, a pós-moderna as estabelece positivadas. Nessa entidade sedentária, há o direito à diferença mas visando a igualdade de inclusão social no mercado onde sobrevive o mais “apto” a conquistar seus “ privilégios” (privus lex, private legus, sendo, justamente, “lei privada”, o “favor” no direito medieval europeu). O mercado requer dissolução da individualidade, compreendida como obstáculo ao consumo e ao mercado padronizador. De onde o fim da diferença - entre as gerações, entre os sexos, entre a linguagem oral e a escrita, entre os comportamentos formais e os informais.

Todos cedem à palavra de ordem “flexibilidade”, a primeira e a última qualidade que o mercado exige de cada um.

Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

“Quem acha que a gente não pode conversar é tão intolerante quanto aqueles que não querem a paz.”

Não defendo o Ahmadinejad (está muito longe de ser um democrata!) e nem o presidente Lula eu acredito que o defenda. Apenas acredito que um chefe de Estado deve estar aberto ao diálogo. Abaixo algumas palavras de Lula sobre a polêmica vinda do presidente do Irã ao Brasil:

“Ora, acontece que se tem um conflito, se tem uma divergência, e não é curta, é uma divergência muito longa, de muito tempo, não adianta você isolar as pessoas. É preciso você estabelecer um diálogo, uma política muito séria de conversação, para que você possa, então, acreditar que é possível estabelecer a paz no Oriente Médio”

“É preciso que a gente agora comece a perguntar quem é que não quer a paz. E detectar quais são os grupos que estão radicalizando para não ter a paz. Porque é com esses que nós precisamos procurar parceiros para conversar”

“Quem acha que a gente não pode conversar é tão intolerante quanto aqueles que não querem a paz.”

A sociologia do pânico


A sociologia do pânico substituiu os economistas do desastre que alimentaram na mídia liberal conservadora o diagnóstico de que o governo Lula iria jogar o país numa crise sem precedentes. Como a economia vai bem, a oposição se voltou para o sistema político, com foco no executivo, alvo de seus prognósticos catastróficos.

Com a aproximação do fim do mandato de Lula e o acirramento das disputas em torno do poder político, surgiu uma nova abordagem no meio acadêmico, mais especificamente no campo sociológico. Seu objeto são as eleições de 2010, e sua metodologia a difusão do pânico. A sociologia do pânico substituiu os economistas do desastre que alimentaram na mídia liberal conservadora o diagnóstico de que o governo Lula iria jogar o país numa crise sem precedentes.

Ocorre que o capitalismo brasileiro, como reconhecem praticamente todos os economistas, tornou-se sólido, com um setor industrial desenvolvido, um mercado interno em expansão, um forte agronegócio, e um sistema financeiro organizado, que atravessou sem maiores problemas a crise mundial de 2008.

Como a economia vai bem, a oposição se voltou para o sistema político, com foco no executivo, alvo de seus prognósticos catastróficos. Em texto amplamente divulgado pela imprensa, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sustenta que “o DNA do autoritarismo popular vai minando o espírito da democracia constitucional” e acrescenta que “vamos regressando a formas políticas do autoritarismo militar”.

O presidente Lula deteria “um poder sem limites”, de caráter burocrático-corporativo. Como a vitória de Dilma possibilitará a emergência do subperonismo no Brasil encarnado na figura de Lula, é preciso dar um basta no continuísmo antes que se consolide o atraso representado na aliança entre Estado, sindicatos, movimentos sociais, fundos de pensão e grandes empresas, cada vez mais fundidos nos altos fornos do tesouro.

Na mesma linha de raciocínio encontra-se o texto do sociólogo Werneck Vianna apropriado por um colunista de O Globo. O governo Lula faz uma volta ao passado com a revalorização do Estado Novo e dos governos militares, cujas doutrinas remontam a Oliveira Vianna e Alberto Torres. Os mortos continuam comandando os vivos e o espírito da Ibéria cobra o seu preço diante de um mercado que não consegue se auto-regular. Como decorrência, a democracia brasileira perde seus fundamentos quando a “sociedade em sua diversidade se deixa submeter ao Estado, conferindo à liderança de um chefe de governo carismático a tarefa de cimentar a unidade de seus contrários”.

Pouco depois, o historiador Carlos Guilherme Mota, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, critica Lula e diz que seu governo é pior do que subperonismo, porque "o peronismo politizava e o pobrismo do Brasil avilta"...

O que há de comum nessas interpretações? Mais do que a preocupação liberal com o equilíbrio de poder entre as instituições, o que está em jogo é o poder político e os recursos disponibilizados pelo Estado. Afinal, como até há pouco tempo prevalecia a tese de “primeiro crescer para depois repartir”, a melhora da qualidade de vida da população não acompanhou o crescimento econômico do país.

Nesse ponto vale resgatar o pensamento de Florestan Fernandes, cuja obra tornou-se clássica na sociologia brasileira. O mestre Florestan continua atual e foi claro no livro “A Revolução Burguesa no Brasil”. A burguesia no Brasil detêm um forte poder econômico, social e político, de base e de alcance nacionais. Sempre atua e reage preventivamente quanto às mudanças mais profundas que devem ser realizadas para expandir a democracia no Brasil.

Uma dessas mudanças é, sem dúvida, a redução da desigualdade social. Basta uma rápida comparação na distribuição da renda nos governos FH e Lula. São inversamente proporcionais. No governo FH, a renda caiu vertiginosamente; no governo Lula, subiu de forma expressiva. No que se refere ao desemprego, o fenômeno foi exatamente o inverso, conforme mostram os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2008/IBGE.

O governo Lula ampliou o mercado interno trazendo para a esfera do consumo as classes C e D que passaram a constituir demanda para a pequena e média empresa em todo o país. Isso contribuiu para o crescimento econômico, assegurado sem inflação, com aumento real de poder aquisitivo para as camadas de baixa renda.

Os estímulos concedidos pelo governo levaram a uma rápida superação da crise econômica. Isso explica porque o objetivo de alguns sociólogos da oposição é semear o pânico no campo político, já que no econômico o governo Lula teve excelente desempenho, ao contrário do que previam os economistas liberais sempre presentes na mídia.

Mas, também no campo político, esses sociólogos vão malhar em ferro frio. O governo Lula é talvez o mais democrático da história política brasileira. Além disso, fortaleceu o Brasil no cenário internacional em função dos interesses brasileiros e latinoamericanos, rompendo com a dependência tradicional em relação aos interesses norteamericanos.

As elites estão divididas. Alguns segmentos estão satisfeitos com a situação econômica. Outros, mais ligados ao poder político, estão desesperados e tentam manipular a opinião pública por meio da mídia.

Lula está sendo criticado mais pelas suas virtudes do que pelos seus defeitos. É curioso observar que esses críticos não abordaram a questão da ética, nem atacaram, por exemplo, o lado mais vulnerável do governo que é a questão ambiental.

O governo brasileiro reluta em levar metas definidas à conferência da ONU sobre clima, em Copenhague. O Brasil pode, mais uma vez, perder a chance de assumir liderança mundial na questão climática que se torna hoje uma prioridade global.

Mas a sociologia do pânico nem tocou nesse assunto, influenciada certamente pela visão produtivista que predomina no mercado. É pena, porque dentro de vinte ou trinta anos os governos vão ser julgados menos pelas obras e mais pelo que fizeram para combater o aquecimento global e evitar as mudanças climáticas que ameaçam a humanidade.

Essas questões, porém, passam longe das preocupações da sociologia do pânico, interessada apenas no poder político em jogo nas eleições presidenciais de 2010.

Liszt Vieira é Sociólogo, Professor da PUC, Presidente do Jardim Botânico do Rio. Aloysio Castelo de Carvalho é Professor da Faculdade de Economia da UFF e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFF.

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