Por Cristiano Ruiz Engelke
No
último dia 23 de abril a cidade de Rio Grande parece ter passado por um
“momento histórico”, como se tivesse adentrado na modernidade. A
abertura de um shopping center simboliza o moderno em
contradição ao tradicional, como uma necessidade de se perceber
como avançado, inserido no mundo global. O Brasil é marcado por
essa dicotomia moderno X tradicional, tão bem explicada pelo
sociólogo José de Souza Martins. Se por um lado há representações
da modernidade (consumismo, tecnologia, grandes centros urbanos e
shopping centers), há também inúmeras características
tradicionais que se mantém (a estratificação em classes sociais, o
mundo rural ou periférico, o “atraso” tecnológico).
De
acordo com Martins, “a modernidade é, num certo sentido, o reino
do cinismo: é constitutiva dela a denúncia das desigualdades e dos
desencontros que a caracterizam. Nela o capitalismo se antecipa à
crítica radical de suas vítimas mais sofridas. Por isso, a
modernidade não pode deixar de conter (e manipular) reconhecíveis
evidências dos problemas e das contradições de que ela é a
expressão”. Portanto é neste “reino do cinismo” que as
relações sociais se desenvolvem, principalmente em espaços
públicos, como shopping centers.
Os
shopping centers são a própria metáfora de nosso mundo
atual. Como bem descreve o importante sociólogo polonês Zygmunt
Bauman, que hoje vivemos em um mundo marcado pelo individualismo e
consumismo, com enfraquecimento dos laços sociais, onde o local que
representa tudo isso, ou ainda o “não-lugar”, é o shopping
center. Não-lugar, pois é um vazio, deslocado do espaço
urbano, da comunidade. Nas palavras de Bauman, “esse ‘lugar sem
lugar’ auto-cercado, diferentemente de todos os lugares ocupados ou
cruzados diariamente, é também um espaço purificado. (...) Os
lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma ‘realidade real’
externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e
segurança”.
Assim
temos duas características importantes: a “entrada no mundo
moderno”, ainda que de forma cínica, e a constituição de
“não-lugares”, com sua limpeza, segurança e exclusão. Creio
que a partir daí podemos divagar sobre supostos rolezinhos
anunciados em Rio Grande e a preocupação por parte da administração
do shopping, bem como de seus frequentadores. É o
escancaramento do cinismo da modernidade do qual trata José de Souza
Martins. O mesmo autor nos ajuda com outro ponto acerca da
modernidade: “A melhor expressão de nossa consciência crítica da
modernidade é o deboche, não a reivindicação social nem a crítica
social propriamente dita, que poderia levar a um certo controle dos
rumos da modernização em nome dos interesses sociais dos que seriam
por ele prejudicados”.
Os
rolezinhos nada mais são que expressão desse deboche! Uma sociedade
que é marcada pelas diferenças sociais e que acredita que esses
“não-lugares” não podem ser ocupados por quem não tem as
características condizentes, o que significa o que Pierre Bourdieu
chamava de “regras de distinção social”, as quais estão claras
e devem ser respeitadas, nem que seja apresentando a carteira de
identidade.
Uma
sociedade com preconceito social histórico tem muita dificuldade
para lidar com a inclusão social (principalmente do consumo) das
classes até então excluídas. É como se estes não soubessem “se
colocar no seu lugar”. Estes eventos representam uma perturbação
da ordem? Pode ser e este é objetivo. Percebo uma mensagem
semelhante a um grito de socorro:
-
“Ei, estamos aqui, nós existimos e queremos ser valorizados e
respeitados!”
Evidentemente
que muitos se incomodam, mas acima de tudo essas “novidades” põem
em evidência os conflitos sociais seculares que ainda persistem,
reforçados pela inclusão de uma parcela significativa da sociedade. Parcela esta que parece ter que "saber o seu lugar", que é percebida como estranho, ainda que esteja em um estabelecimento ao lado de seu bairro.
Mesmo que tenhamos uma
democracia consolidada em nosso país, ainda temos um forte
“autoritarismo social”, definido por Evelina Dagnino como “formas
de sociabilidade numa cultura autoritária de exclusão que subjaz ao
conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações
sociais em todos os seus níveis”. É contra esse autoritarismo
social que os rolezinhos “gritam”, e que devíamos observar em
vez de revoltosamente exalar preconceito e mais autoritarismo.
Enfim,
deixo a reflexão para que, em vez de apenas reclamar de forma
preconceituosa, pensemos com mais calma, com base na alteridade e na
construção de uma sociedade mais justa para todos, por mais difícil
que seja, com ou sem shopping centers e rolezinhos (que ainda
nem aconteceram!).
Referências:
ALVARES,S.
DAGNINO E. ESCOBAR. (org.). Cultura Política nos Movimentos
Sociais Latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
MARTINS,
José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo:
Contexto, 2008.
Um comentário:
Texto agora também no site Tuco-tuco, no qual passo a ser colaborador.
http://tucotuco.org/2014/04/29/rolezinho-em-rio-grande-uma-breve-analise-sociologica-2/
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