domingo, 27 de abril de 2014

Rolezinho em Rio Grande (?) - uma breve análise sociológica



Por Cristiano Ruiz Engelke

 No último dia 23 de abril a cidade de Rio Grande parece ter passado por um “momento histórico”, como se tivesse adentrado na modernidade. A abertura de um shopping center simboliza o moderno em contradição ao tradicional, como uma necessidade de se perceber como avançado, inserido no mundo global. O Brasil é marcado por essa dicotomia moderno X tradicional, tão bem explicada pelo sociólogo José de Souza Martins. Se por um lado há representações da modernidade (consumismo, tecnologia, grandes centros urbanos e shopping centers), há também inúmeras características tradicionais que se mantém (a estratificação em classes sociais, o mundo rural ou periférico, o “atraso” tecnológico).

De acordo com Martins, “a modernidade é, num certo sentido, o reino do cinismo: é constitutiva dela a denúncia das desigualdades e dos desencontros que a caracterizam. Nela o capitalismo se antecipa à crítica radical de suas vítimas mais sofridas. Por isso, a modernidade não pode deixar de conter (e manipular) reconhecíveis evidências dos problemas e das contradições de que ela é a expressão”. Portanto é neste “reino do cinismo” que as relações sociais se desenvolvem, principalmente em espaços públicos, como shopping centers.

Os shopping centers são a própria metáfora de nosso mundo atual. Como bem descreve o importante sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que hoje vivemos em um mundo marcado pelo individualismo e consumismo, com enfraquecimento dos laços sociais, onde o local que representa tudo isso, ou ainda o “não-lugar”, é o shopping center. Não-lugar, pois é um vazio, deslocado do espaço urbano, da comunidade. Nas palavras de Bauman, “esse ‘lugar sem lugar’ auto-cercado, diferentemente de todos os lugares ocupados ou cruzados diariamente, é também um espaço purificado. (...) Os lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma ‘realidade real’ externa pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança”.

Assim temos duas características importantes: a “entrada no mundo moderno”, ainda que de forma cínica, e a constituição de “não-lugares”, com sua limpeza, segurança e exclusão. Creio que a partir daí podemos divagar sobre supostos rolezinhos anunciados em Rio Grande e a preocupação por parte da administração do shopping, bem como de seus frequentadores. É o escancaramento do cinismo da modernidade do qual trata José de Souza Martins. O mesmo autor nos ajuda com outro ponto acerca da modernidade: “A melhor expressão de nossa consciência crítica da modernidade é o deboche, não a reivindicação social nem a crítica social propriamente dita, que poderia levar a um certo controle dos rumos da modernização em nome dos interesses sociais dos que seriam por ele prejudicados”.

Os rolezinhos nada mais são que expressão desse deboche! Uma sociedade que é marcada pelas diferenças sociais e que acredita que esses “não-lugares” não podem ser ocupados por quem não tem as características condizentes, o que significa o que Pierre Bourdieu chamava de “regras de distinção social”, as quais estão claras e devem ser respeitadas, nem que seja apresentando a carteira de identidade.

Uma sociedade com preconceito social histórico tem muita dificuldade para lidar com a inclusão social (principalmente do consumo) das classes até então excluídas. É como se estes não soubessem “se colocar no seu lugar”. Estes eventos representam uma perturbação da ordem? Pode ser e este é objetivo. Percebo uma mensagem semelhante a um grito de socorro:

- “Ei, estamos aqui, nós existimos e queremos ser valorizados e respeitados!”

Evidentemente que muitos se incomodam, mas acima de tudo essas “novidades” põem em evidência os conflitos sociais seculares que ainda persistem, reforçados pela inclusão de uma parcela significativa da sociedade. Parcela esta que parece ter que "saber o seu lugar", que é percebida como estranho, ainda que esteja em um estabelecimento ao lado de seu bairro

Mesmo que tenhamos uma democracia consolidada em nosso país, ainda temos um forte “autoritarismo social”, definido por Evelina Dagnino como “formas de sociabilidade numa cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis”. É contra esse autoritarismo social que os rolezinhos “gritam”, e que devíamos observar em vez de revoltosamente exalar preconceito e mais autoritarismo.

Enfim, deixo a reflexão para que, em vez de apenas reclamar de forma preconceituosa, pensemos com mais calma, com base na alteridade e na construção de uma sociedade mais justa para todos, por mais difícil que seja, com ou sem shopping centers e rolezinhos (que ainda nem aconteceram!).


Referências:

ALVARES,S. DAGNINO E. ESCOBAR. (org.). Cultura Política nos Movimentos Sociais Latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Contexto, 2008.

Um comentário:

Cristiano Ruiz Engelke disse...

Texto agora também no site Tuco-tuco, no qual passo a ser colaborador.
http://tucotuco.org/2014/04/29/rolezinho-em-rio-grande-uma-breve-analise-sociologica-2/