segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Redes sociais: pescaria de tarrafa ou de molinete?

Reproduzo texto do site do Le Monde Diplomatique Brasil, de autoria de Carlos Fernando Galvão, que trata dos movimentos sociais organizados pelas redes sociais. Muito boa análise:

http://diplomatique.uol.com.br/acervo.php?id=2984

Redes sociais: pescaria de tarrafa ou de molinete?

Visualizamos pelo mundo diversas manifestações pró-redes sociais, e o quanto elas possibilitam uma revolução - não política, mas social. A riqueza desse movimento é a não-existência de lideranças visíveis, partidos políticos ou algo que o valha. Seria, pois, um movimento de reivindicação espontânea da cidadania. por Carlos Fernando Galvão

(Manifestante egipício na Praça Tahir, onde inúmeras manifestações ocorreram no ínicio de 2011 e culminaram com a queda do presidente Hosni Mubarak).

A vida é movimento e pausa, tal como uma bela canção e é alterada pelo que fazemos, notadamente, de modo coletivo. Até que ponto as políticas públicas de redistribuição de renda têm contribuído para melhorar a vida e a auto-estima do cidadão brasileiro, como um todo, e das administrações públicas, em particular? Será essa alteração mensurável ou, ao menos, passível de ser analisada e interpretada, ainda que de um modo um tanto intuitivo? Se essa alteração puder ser medida ou percebida ou, ao menos, de algum modo, intuída, poderíamos pensar na criação de um provisoriamente chamado de Indicador Geral de Felicidade Urbana? Sonhos de uma noite de verão? Bem...



Daniel Kahneman, psicólogo e Nobel de Economia em 2002, junto com um grupo de economistas estão criando o Índice de Felicidade Nacional ou Conta de Bem-Estar Nacional que, em linhas gerais, tem o objetivo de medir a satisfação das pessoas com suas vidas. A pesquisa foi financiada pelo Instituto Gallup e pelo governo norte-americano. As camadas mais ricas da população se declaravam, à época, (hoje, depois da crise de 2008-2009, certamente essa percepção já foi alterada) mais felizes do que as mais pobres, mas até determinado nível, após o qual a satisfação estancava. Para Richard Layard, da London School of Economics, a explicação para o paradoxo é que no início, quando enriquecemos, ficamos felizes, mas depois nos acostumamos. Outro fator para esse paradoxo, segundo Layard, é que as pessoas tendem, não raro, a medir sua felicidade em relação às demais pessoas e não a partir de sua própria realidade. Na pesquisa de Kahneman, constatou-se, uma vez questionados sobre se preferiam ganhar US$50 mil anuais, por exemplo, enquanto as outras pessoas ganhariam US$25 mil, ou se preferiam ganhar US$100 mil, enquanto os outros ganhariam o dobro, a maioria dos entrevistados optaram pela primeira opção. Ou seja, em geral, as pessoas preferem ser mais pobres se foram relativamente mais ricos que os demais. Lamentável, mas essa é a realidade do ser humano, no geral. No entender de Layard, isso ocorre por um excesso de rivalidade: se o padrão é o outro, a competição torna-se infinita, bem como o trabalho e o consumo – e, complementamos, o que faz com que as pessoas esqueçam-se, em parte, de suas vidas e vivam as dos outros e isso não traz felicidade.

Para tentar entender melhor o mundo do consumo, os economistas criaram a “propensão marginal a consumir”, que mede o quanto se incrementa no consumo de uma pessoa quando há um acréscimo em sua renda disponível líquida, expressa na unidade monetária com que essa pessoa lida, no dia-a-dia. Essa propensão se define como a variação do consumo na nova renda disponível e é calculada matematicamente. Deixando os cálculos para os economistas matemáticos é, obviamente esperado que o valor desse propensão seja mais alto em economias mais desenvolvidas. No caso brasileiro, desde o início dos anos 90, com a implantação do Real como moeda nacional, esse valor tem crescido e teve seu maior crescimento nos anos 2000 (não se sabe até que ponto tal crescimento se manterá sem, por exemplo, investimentos em infra-estrutura e educação, mas essa discussão fica para outro artigo).


O filósofo Vladimir Safatle mostrou, em artigo recente, que “por mais que economistas gostem de dizer o contrário, a ação econômica é baseada em sistemas de crenças e expectativas cuja racionalidade é fundada em fortes disposições psicológicas ‘irracionais’ – pois estão ligadas a fantasias” e alerta para o fato de que sociedades emergentes, como a brasileira, “crescem com alta desigualdade de renda, o que com que uma parcela mínima da população, com poder aquisitivo exorbitante, puxe para cima a cadeia de preços”. Isso, é claro, contraria uma idéia comum dos economistas em sua Teoria Geral da Formação de Preços, qual seja, ainda nas palavras de Safatle, “a mudança no preço de sua sessão não foi o resultado de alguma nova conformação das dinâmicas de oferta e de procura. Ela foi, na verdade, a descoberta de que, em países com alta concentração de renda, certas pessoas estão dispostas a pagar mais simplesmente devido à crença de que as coisas caras foram feitas para ela”.


Ora, realizando um pequeno e rápido exercício de reflexão sobre o que nos traz a pesquisa de Daniel Kahneman e estabelecendo uma ponte com a idéia de Vladimir Safatle, temos que os seres humanos, coletivamente, são movidos por interesses setorizados e egoístas.


Se conseguirmos um dia criar alguma coisa parecida com um Indicador Geral de Felicidade Urbana, talvez possamos retrabalhar nossos valores individuais e coletivos, voltando-os para fins mais nobres do que ganharmos rios de dinheiro, independente da vida alheia que agoniza, aqui e alhures, ou de sermos uma ou vivermos a vida das celebridades, essa entidade social tão perseguida quanto deletéria à vida numa sociedade que se proclama solidária e justa, ou mesmo do que termos poder, não como um instrumento afetuoso de transformação social, mas poder pelo poder, como um meio de nos sobrepormos ao outro que, sem ele, fica ou se sente humilhado e procura, de todos os modos, o mesmo caminho, realimentando esse círculo vicioso. E, convenhamos: quem segue os mesmos caminhos tende a chegar nos mesmos lugares. E há tantos lugares bonitos e agradáveis para visitarmos ainda...


O que fazer, então?


Nos últimos anos, a grande imprensa, vários políticos, diversos agentes econômicos, inúmeros setores dos movimentos sociais, enfim, praticamente toda sociedade, dita organizada, em vários lugares do planeta, vem divulgado, com grande entusiasmo, a boa nova das redes sociais e seu poder de mobilizar as pessoas em nome de uma causa. Muitos dos que comungam com este entusiasmo atribuem à atuação dessas redes o que de mais parecido há com uma revolução. Não uma revolução política, mas social, no sentido de que, e essa seria a riqueza desse movimento, não há, ou não haveria, lideranças visíveis, partidos políticos ou algo que o valha. Seria, pois, um movimento de reivindicação espontânea da cidadania.


A chamada “Primavera Árabe”, os “Indignados” da Espanha ou os explorados do “Ocupem Wall Street”, todos esses movimentos da cidadania teriam nascido das condições sociais adversas de cada país e, sem exceção, seriam, segundo os entusiasmados acima referidos, característicos da tal espontaneidade, ao largo e por cima da política tradicional, sempre entendida, quase que exclusivamente, como sinônimo das ações partidárias ou, quando muito, do terceiro setor (ONGs, sindicatos etc.), como se ações diretas da cidadania não fossem políticas, mas apenas “sociais”, como se não houve alternativas. A quem interessa essa idéia?


Muitos, alguns por ingenuidade, outros, por desinformação, uns tantos por interesse mesmo, criticam, no geral, a assim chamada Democracia Direta (referendos e plebiscitos), além de mostrar verdadeira ojeriza quando alguém fala em Democracia Participativa ou, no máximo, usam esta expressão quando estão a se referir ao voto e às muitas passeatas, todas importantes, mas insuficientes, por si mesmas. A luta por espaços de poder é uma constante na vida humana, desde tempos imemoriais. Não existe vácuo, em se tratando de política e quem não gosta de política, feliz ou infelizmente, é governado por quem gosta, ainda que não deseje isso ou mesmo renegue tal fato; omitir-se é passar um cheque em branco para quem, talvez, não proponha e/ou realize coisas que estejam de acordo com nossas idéias e concepções de mundo e de vida social. Aqui, certamente, está uma origem possível, dentre outras, do movimento planetário que descobriu as redes sociais como instrumento de protesto e mobilização: uma espécie de bastião por um outro mundo, quem sabe, desglobalizado ou, ao menos, mais justo nesse processo. Alguns afirmam que a globalização, tal como foi e é conduzida, esvaziou a democracia de sua substância e transformou nossas vidas em um produto subsidiário das vontades dos tais “mercados”. Será? Até quando?


A necessidade de criação desse outro mundo está levando muitas pessoas a questionar as formas tradicionais de administração pública e de fazer política e as está empurrando, por assim dizer, a tomar as iniciativas de realizar os protestos que estamos vendo, diariamente, nos meios de comunicação. Importante? Importantíssimo. Que continuem e cresçam tais iniciativas. Mas...


Se a tal “revolução social” ficar nisso, será mais uma frustração. Reivindicações pontuais, sem maiores objetividades e sistematizações, sem líderes identificáveis, com poucas metodologias (ou nenhuma) que realizam uma democracia participativa e com algumas leis que ainda são bonitos enfeites discursivos na boca de nossas lideranças ou em compêndios jurídicos e teses acadêmicas, nada disso mudará, real e estruturalmente, o nível de consciência política e de ações públicas que melhorem, para valer, a vida política. O livro “Democracia: do conceito à prática, da representação à participação”, Editora Claridade, lançado em 2010, de nossa autoria, procura dar uma resposta possível à questão metodológica da participação popular na vida urbana, quer dizer, procura oferecer à cidadania uma resposta viável à pergunta: como realizar uma verdadeira democracia participativa, não estando aparelhado por nenhum grupo de poder e sem demagogia e, ao mesmo tempo, sendo eficaz e solidário?

Incensar esses “movimentos espontâneos” e desideologizar as lutas políticas, confundindo-as com ações criminosas ou, quando há condescendência, com idéias ultrapassadas, é um desserviço às causas maiores, que lutam pela concretização, por exemplo, do terceiro lema da Revolução Francesa (ainda!): a fraternidade. Sim, porque uma disputa política se faz com a cabeça, mas também com o coração! Gandhi dizia que o conhecimento só serve para tornar melhor a vida do Homem, mas ao mesmo tempo, de nada adiantaria a cabeça estar cheia, se o coração está vazio.

Ideologia não é um repertório de conteúdos pré-fabricados e radicalizados, mas uma espécie de gramática de engendramento de sentidos sociais. Só esse tipo de ideologia, realizada com a cabeça e com o coração, com respeito pelo outro e baseada em princípios democráticos, fará a verdadeira revolução política (e pacífica) que precisamos e merecemos. As redes sociais, que devem ser incentivadas, não têm, contudo, condições de pescar de tarrafa, por assim dizer, como seria o ideal, arrastando multidões para ações políticas concretas, pelo tempo necessário, ou seja, para além da moda que, por definição e natureza, logo passará. A pescaria não pode ser de molinete, sob o risco de alimentar apenas alguns de nós e não a humanidade!


Carlos Fernando Galvão

Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Presidente da ONG Cidade Viva

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